#ficaadica: Ler escutando a música Hurt - Johnny Cash
A temperatura caiu rapidamente para uma tarde de outono. Nas ruas da cidade grande, as pessoas andavam com passos apressados para escapar do frio e da chuva que iria começar. No meio da cidade, um prédio que poucos paravam para olhar, era um borrão entre os milhares de olhos. E dentro do prédio, uma sala cinzenta, um pouco escura, onde a luz mal entrava por uma janela pequena. Era possível ouvir o vento lá fora. Entre duas pilastras grandes e redondas, que pareciam irmãs gêmeas, estava sentado em uma cadeira surrada, o jovem Heitor. De cabeça baixa, ele podia sentir as costelas doerem e os olhos viam as pernas finas e a ponta dos sapatos surrados. O pensamento de sua própria aparência o fez franzir a testa.
Foi quando ao levantar a cabeça se deu conta do copo plástico com água em cima da mesa a sua frente. Com os braços voltados para trás e suas mãos algemadas na cadeira, ele não ousava fazer grandes movimentos. E de repente a porta se abriu, revelando uma figura grande. Bóris, um senhor de meia idade e delegado, entrou e observou-o por um tempo, antes de dar mais um passo. A presença dele não incomodou Heitor, que continuou com a cabeça baixa. O suspiro saiu pela boca do delegado.
- Eu já decorei a cor dos seus olhos. Não que eu reparei nisso, mas decorei, menino. À primeira vista é castanho, mas eu juro ver algum verde neles. Então, sentiu saudades de mim ou o quê? - Bóris falou em pé encostado na mesa.
Heitor, ao escutar a voz conhecida, finalmente olhou para ele, mas permaneceu calado.
- Não está cansado? – continuou o delegado, puxando assunto.
O silêncio na sala deixou o ambiente ainda mais frio.
- Eu estou cansado. Estou irritado hoje. Sabe aqueles dias, que sem razão aparente você acorda com raiva do mundo? Estou assim hoje. Cheguei às 7 horas da manhã, conversei com uma mulher mal-educada ao telefone que me chamou de inútil, porque eu não posso prender o marido para deixá-lo longe das bebidas. E essa camisa me deixa desconfortável. Ou minha pele está sentindo o meu mau humor ou eu engordei. Infelizmente acho que é a última opção. Então, por favor, abra essa boca e fale. Assim você facilita um pouco mais o meu dia.
Heitor sentiu vontade de rir
- Eu não entendo vocês. – Ele fala pela primeira vez.
- Acho que não é o único.
- Vocês me deixam aqui esperando por mais de meia hora com um copo de água na minha frente e me algemam.
O Senhor Bóris abriu um meio sorriso e pensou. “O menino está certo”. Decidido a deixar a situação um pouco mais confortável para ambos, ele caminhou até Heitor e soltou as algemas.
- Por que fez isso? – Perguntou o menino.
- Você não vai me matar, vai?
- Eu não sou assassino. – A voz saiu mais alta que o esperado.
O delegado sentou na outra cadeira surrada e ali uma cena com troca de olhares começou. O mesmo silêncio. Bóris abriu a pasta.
- Eu adoro o seu arquivo. Tenho vontade de rir às vezes. É algum tipo de teste? Olha isso: roubo, roubo, roubo. Briga e roubo. Todos eles são pequenos furtos. É errado roubar, mas porque roubar um uísque? Aliás, você é um péssimo ladrão. É sempre pego.
Heitor continuou olhando para Bóris e reparou na arma em sua cintura.
- Mas dessa vez você roubou dinheiro - Ele ri - Meu Deus, você roubou essa quantia? Por que roubaria tão pouco? Estou curioso!
Heitor continuou em silêncio.
- Você é tão jovem. É algum tipo de aventura? É uma aposta com alguém? Não faz sentido. Eu sei que você é inteligente. Eu vejo isso em você.
Heitor ficou surpreso com a afirmação.
- Vamos menino, eu só quero entender. Porquê dessa vez, eu realmente estou perdendo a minha paciência com você. Não vai falar, então tudo bem. Outro policial vem lhe buscar e te levar para a cela. Vai passar um tempo aqui, quem sabe você aprende.
- Já sentiu a pele doer? – pergunta Heitor com a voz fraca.
- A pele?
- Sim. A minha dói todos os dias nessa época do ano. No outono e inverno. É uma dor que não passa. Por isso o uísque. Ajuda-me aliviar o frio e mesmo que queime, me ajuda a sentir algo no estômago.
- Entendo.
- Não entende não. Todos vocês falam que entendem. Vocês olham, mas não enxergam. O frio me faz lembrar todos os dias, quem eu sou. Sou um invisível. Essa dor é a única coisa que faz eu me sentir vivo.
O Senhor Bóris ficou em silêncio.
- O Senhor já sentiu gosto de sangue na sua boca?
- Sim.
- Quantas vezes?
- Poucas.
- Eu sinto toda semana. É o único gosto familiar para mim. Sangue. Quando eu apanho, quando me machucam. Eu não sei o sabor da comida há muito tempo. O que você come? O que você gosta? Eu mal sei responder. Mas qual o gosto que eu lembro? Sangue.
O Senhor Bóris permaneceu em silêncio.
- O senhor já sentiu medo?
- Sim. – Respondeu sentindo-se incomodado.
- Eu conheço o cheiro do medo. Eu durmo com ele, acordo com ele, eu respiro isso. Eu sei o que é ter medo de tudo. Eu me sinto preso em um relógio, em um imenso relógio, onde cada segundo da minha patética vida é feito de medo. Pavor!
O vento lá estava mais forte e a pouca luz da janela desapareceu.
- O senhor tem sonhos?
- Eu tenho sonhos, menino.
- Acho que todos nós temos. Mas do que adianta ter sonhos? Do que adianta talento, sonhar se não tem oportunidade. Se não tem chance. Eu queria ser escritor, o que é ridículo, porque eu não sei nem escrever e nem ler. O que eu aprendi foi na rua senhor. Aprendi a sentir medo, o gosto do sangue. Aprendi que a dor na pele é o frio e o estômago queimando é fome.
- Eu entendo que...
Heitor sentiu seu corpo tremer. A raiva fez seu coração acelerar e a sentiu passar pela garganta e um grito se formar.
- Para de dizer que você entende, porque você não entende.
O grito ecoou pela sala cinzenta e cobriu por alguns segundos o vento que assobiava cada vez mais forte.
- Você não bebeu a água.
- Eu não disse que ia beber.
- Mas...
- Eu só questionei. Ah, está vendo? Como é fácil se enganar? Você enxergou o óbvio, o superficial. Você viu uma situação e deduziu que eu ia beber. Você viu o que queria ver e não a realidade. Era uma simples observação.
- Como eu disse, você é inteligente. Não vai beber mesmo assim? – Bóris perguntou respirando fundo.
- Não, eu estou com gosto de sangue na boca.
Bóris levantou e foi até a porta. E antes de ameaçar sair da sala, ele se voltou para o menino.
- Não desista, não jogue isso fora. Tudo tem um jeito, não estrague a sua vida menino. O que você quer? Viver preso, morrer?
Heitor soltou uma pequena risada e sentiu as lágrimas invadindo os olhos.
- Eu já estou morto.
A frase fez o delegado sentir a bílis subir até a boca. Bóris o advertiu e deu mais uma chance ao menino. E lá estava Heitor, o menino invisível, do lado de fora do prédio que quase ninguém via. A vida era só uma ilusão e a chuva finalmente começou a cair.
Comments