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Foto do escritorMariana Nabor

O menino invisível


#ficaadica: Ler escutando a música Hurt - Johnny Cash




A temperatura caiu rapidamente para uma tarde de outono. Nas ruas da cidade grande, as pessoas andavam com passos apressados para escapar do frio e da chuva que iria começar. No meio da cidade, um prédio que poucos paravam para olhar, era um borrão entre os milhares de olhos. E dentro do prédio, uma sala cinzenta, um pouco escura, onde a luz mal entrava por uma janela pequena. Era possível ouvir o vento lá fora. Entre duas pilastras grandes e redondas, que pareciam irmãs gêmeas, estava sentado em uma cadeira surrada, o jovem Heitor. De cabeça baixa, ele podia sentir as costelas doerem e os olhos viam as pernas finas e a ponta dos sapatos surrados. O pensamento de sua própria aparência o fez franzir a testa.


Foi quando ao levantar a cabeça se deu conta do copo plástico com água em cima da mesa a sua frente. Com os braços voltados para trás e suas mãos algemadas na cadeira, ele não ousava fazer grandes movimentos. E de repente a porta se abriu, revelando uma figura grande. Bóris, um senhor de meia idade e delegado, entrou e observou-o por um tempo, antes de dar mais um passo. A presença dele não incomodou Heitor, que continuou com a cabeça baixa. O suspiro saiu pela boca do delegado.


- Eu já decorei a cor dos seus olhos. Não que eu reparei nisso, mas decorei, menino. À primeira vista é castanho, mas eu juro ver algum verde neles. Então, sentiu saudades de mim ou o quê? - Bóris falou em pé encostado na mesa.


Heitor, ao escutar a voz conhecida, finalmente olhou para ele, mas permaneceu calado.

- Não está cansado? – continuou o delegado, puxando assunto.


O silêncio na sala deixou o ambiente ainda mais frio.


- Eu estou cansado. Estou irritado hoje. Sabe aqueles dias, que sem razão aparente você acorda com raiva do mundo? Estou assim hoje. Cheguei às 7 horas da manhã, conversei com uma mulher mal-educada ao telefone que me chamou de inútil, porque eu não posso prender o marido para deixá-lo longe das bebidas. E essa camisa me deixa desconfortável. Ou minha pele está sentindo o meu mau humor ou eu engordei. Infelizmente acho que é a última opção. Então, por favor, abra essa boca e fale. Assim você facilita um pouco mais o meu dia.


Heitor sentiu vontade de rir


- Eu não entendo vocês. – Ele fala pela primeira vez.


- Acho que não é o único.


- Vocês me deixam aqui esperando por mais de meia hora com um copo de água na minha frente e me algemam.


O Senhor Bóris abriu um meio sorriso e pensou. “O menino está certo”. Decidido a deixar a situação um pouco mais confortável para ambos, ele caminhou até Heitor e soltou as algemas.


- Por que fez isso? – Perguntou o menino.


- Você não vai me matar, vai?


- Eu não sou assassino. – A voz saiu mais alta que o esperado.


O delegado sentou na outra cadeira surrada e ali uma cena com troca de olhares começou. O mesmo silêncio. Bóris abriu a pasta.


- Eu adoro o seu arquivo. Tenho vontade de rir às vezes. É algum tipo de teste? Olha isso: roubo, roubo, roubo. Briga e roubo. Todos eles são pequenos furtos. É errado roubar, mas porque roubar um uísque? Aliás, você é um péssimo ladrão. É sempre pego.


Heitor continuou olhando para Bóris e reparou na arma em sua cintura.


- Mas dessa vez você roubou dinheiro - Ele ri - Meu Deus, você roubou essa quantia? Por que roubaria tão pouco? Estou curioso!


Heitor continuou em silêncio.


- Você é tão jovem. É algum tipo de aventura? É uma aposta com alguém? Não faz sentido. Eu sei que você é inteligente. Eu vejo isso em você.


Heitor ficou surpreso com a afirmação.


- Vamos menino, eu só quero entender. Porquê dessa vez, eu realmente estou perdendo a minha paciência com você. Não vai falar, então tudo bem. Outro policial vem lhe buscar e te levar para a cela. Vai passar um tempo aqui, quem sabe você aprende.


- Já sentiu a pele doer? – pergunta Heitor com a voz fraca.


- A pele?


- Sim. A minha dói todos os dias nessa época do ano. No outono e inverno. É uma dor que não passa. Por isso o uísque. Ajuda-me aliviar o frio e mesmo que queime, me ajuda a sentir algo no estômago.


- Entendo.


- Não entende não. Todos vocês falam que entendem. Vocês olham, mas não enxergam. O frio me faz lembrar todos os dias, quem eu sou. Sou um invisível. Essa dor é a única coisa que faz eu me sentir vivo.


O Senhor Bóris ficou em silêncio.


- O Senhor já sentiu gosto de sangue na sua boca?


- Sim.


- Quantas vezes?


- Poucas.


- Eu sinto toda semana. É o único gosto familiar para mim. Sangue. Quando eu apanho, quando me machucam. Eu não sei o sabor da comida há muito tempo. O que você come? O que você gosta? Eu mal sei responder. Mas qual o gosto que eu lembro? Sangue.


O Senhor Bóris permaneceu em silêncio.


- O senhor já sentiu medo?


- Sim. – Respondeu sentindo-se incomodado.


- Eu conheço o cheiro do medo. Eu durmo com ele, acordo com ele, eu respiro isso. Eu sei o que é ter medo de tudo. Eu me sinto preso em um relógio, em um imenso relógio, onde cada segundo da minha patética vida é feito de medo. Pavor!


O vento lá estava mais forte e a pouca luz da janela desapareceu.


- O senhor tem sonhos?


- Eu tenho sonhos, menino.


- Acho que todos nós temos. Mas do que adianta ter sonhos? Do que adianta talento, sonhar se não tem oportunidade. Se não tem chance. Eu queria ser escritor, o que é ridículo, porque eu não sei nem escrever e nem ler. O que eu aprendi foi na rua senhor. Aprendi a sentir medo, o gosto do sangue. Aprendi que a dor na pele é o frio e o estômago queimando é fome.

- Eu entendo que...


Heitor sentiu seu corpo tremer. A raiva fez seu coração acelerar e a sentiu passar pela garganta e um grito se formar.


- Para de dizer que você entende, porque você não entende.


O grito ecoou pela sala cinzenta e cobriu por alguns segundos o vento que assobiava cada vez mais forte.


- Você não bebeu a água.


- Eu não disse que ia beber.


- Mas...


- Eu só questionei. Ah, está vendo? Como é fácil se enganar? Você enxergou o óbvio, o superficial. Você viu uma situação e deduziu que eu ia beber. Você viu o que queria ver e não a realidade. Era uma simples observação.


- Como eu disse, você é inteligente. Não vai beber mesmo assim? – Bóris perguntou respirando fundo.


- Não, eu estou com gosto de sangue na boca.

Bóris levantou e foi até a porta. E antes de ameaçar sair da sala, ele se voltou para o menino.


- Não desista, não jogue isso fora. Tudo tem um jeito, não estrague a sua vida menino. O que você quer? Viver preso, morrer?


Heitor soltou uma pequena risada e sentiu as lágrimas invadindo os olhos.


- Eu já estou morto.


A frase fez o delegado sentir a bílis subir até a boca. Bóris o advertiu e deu mais uma chance ao menino. E lá estava Heitor, o menino invisível, do lado de fora do prédio que quase ninguém via. A vida era só uma ilusão e a chuva finalmente começou a cair.



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