top of page

A echarpe azul



#ficaadica: Ler escutando a música Golden Slumbers/Carry That Weight - Jennifer Hudson





Uma batida duas noites atrás. O sono pesava nas pálpebras, mas por medo, não conseguiu dormir. Ela até gostava de ouvir as histórias que o senhor de cabelos grisalhos contava. Ela também gostava da sensação do sol, que parecia uma pérola prateada no céu nublado, e causava uma sensação reconfortante na pele delicada que sempre era tocada pelo frio. Emily, tinha apenas oito anos, e uma vida que parecia ser vivida pela eternidade. A rua não era o melhor lugar para se viver, mas era o endereço que conhecia. Entre outras crianças, ela se aquecia da manhã gelada, enquanto o estômago reclamava e as palavras do senhor de cabelos grisalhos entravam por seus pequenos ouvidos.


-Você devia ver como era, pequena Emily. Os céus se encheram de luzes coloridas, enquanto eu abraçava Catarina, o amor da minha vida.


Emily apenas sorriu e acenou com a cabeça. Não entendia o que eram as luzes coloridas no céu e muito menos o que era o amor de toda uma vida. Os casacos longos, como ela costumava chamar, as pessoas que andavam freneticamente de um lado para o outro olhando para o pulso, saiam da cafeteria com copos que faziam fumaça. Foi quando algo cruzou pelos olhos castanhos dela. Pela primeira vez, o vento que trazia o frio, conduzia a coisa mais linda, que ela já vira. Pareciam pequenos pontos de luz, que juntos formavam a cor azul. Hipnotizada, ela se levantou e ficou de frente, com a echarpe azul de um pano transparente e fino, que dançava no ar. No primeiro momento, Emily teve medo de tocar naquele pequeno sonho. Chegou a respirar fundo e limpou as mãos no casaco surrado que usava. Ao pegar, sorriu, como se estivesse carregando a beleza entre os dedos.


-O que tem aí pequena? – Perguntou o senhor de cabelos grisalhos.


-Um pedacinho do céu.


Com medo de que as outras crianças usassem a echarpe, ela guardou dentro do casaco. Os dias passavam rápidos como borrões no tempo. Vivia a rotina que estava acostumada de dia e de noite, sonhava, um sonho desconhecido, e que queria um dia viver. Em uma manhã ao andar pelos bairros com prédios espelhados, ela não se conteve. Com cuidado, pegou a echarpe, colocou em volta do pescoço e olhou para o reflexo. O pequeno rosto que a olhou de volta sorriu, se achou bonita e ficou feliz por ter algo que era só dela. Quando voltou o senhor de cabelos grisalhos já estava deitado no lugar de costume e ela se ajeitou perto das outras crianças para dormir.


-Sabe quem iria ficar linda com esse pano azul? – Perguntou o senhor.


-Quem?


-A minha Catarina.


Emily cedeu ao sono. Parecia que havia dormido apenas alguns segundos, quando uma das crianças a acordou.


-Emily, os homens de casaco longo estão vindo. Precisamos sair daqui, agora. Vamos devagar até aquela esquina e depois corremos. Não olhe para trás e não pare por nada.


Ela levantou e foi andando devagar. Seu coração batia rápido e mesmo no frio, sentiu uma gota de suor se formar na testa. Andou com as outras crianças sem fazer muito barulho e, ao se aproximar da esquina, prendeu a respiração, colocou as mãos dentro do casaco e agarrou a echarpe, até seus dedos ficarem vermelhos, com medo de perder, de deixar cair. Só estava aguardando o sinal, quando de repente uma luz apareceu em frente aos seus olhos.


-Corre Emily, corre.


Emily correu sem parar, sem olhar para trás e só parou quando o ar sumiu dos seus pulmões ao encontrar uma árvore que ficava em um parque localizado no centro da cidade. Esperou o sol começar a nascer para tomar o caminho de volta. Não havia ninguém lá, nem mesmo o senhor de cabelos grisalhos. Ela chorou baixinho, porque estava mais sozinha do que nunca. E outro dia começou, e mais outro e mais outro e nenhum sinal de companhia para ela. Mas naquele fim de tarde, a temperatura estava mais baixa e o sol estava sem força para aquecer. Ao atravessar a rua em direção à cafeteria, enrolou a echarpe no pescoço com a esperança de aliviar o frio, porém, desta vez, o reflexo na vitrine não sorriu de volta. O barulho da porta a fez olhar para o lado e uma figura alta, forte, de cabelos loiros e casaco longo estava olhando para ela. Emily sentiu suas pernas perderem o controle e um arrepio subiu a espinha. Os olhos do homem pararam na echarpe e com apenas um passo, alcançou o pulso da menina e puxou.


Ela não lutou, não gritou. Apenas se deixou ser levada por ele. Andaram por poucos quarteirões e entraram em um prédio. Ela tremia, queria chorar e não conseguia. O chão era de madeira, o teto era alto, com formas redondas de ferro seguradas por grossas cordas e uma cortina vermelha transformava tudo em uma grande caixa silenciosa. O homem a colocou sentada em uma cadeira e saiu por uma porta. Emily continuava olhando fixamente para a grande caixa silenciosa, que tinha alguns móveis bonitos e elegantes.

O lugar ganhou uma luz repentina quando a porta se abriu e uma bela imagem deu vida ao lugar. Uma mulher de cabelos longos, castanhos e ondulados andou até ela sorrindo. Era a mulher mais linda que Emily tinha visto.


-Então é você que encontrou a minha echarpe?


-Eu não entendi.


-O que está em volta do seu pescoço.


-O pedacinho do céu?


A mulher sorriu ainda mais ao ouvir a descrição da menina. Com todo cuidado, ela retirou a echarpe do pescoço de Emily e ficou de joelhos até ficar da altura dos olhos da pequena.

-Pelo visto você gostou mesmo desse pedacinho do céu. Podemos fazer assim, eu vou me apresentar hoje e depois você pode me contar como a encontrou. Enquanto isso, você me empresta ela? Eu vou precisar!


-Apresentar?


-Sim, eu sou atriz e aqui é um teatro. E aquele lugar é o palco, onde toda a magia acontece. Se você não estiver com pressa, eu te convido para assistir.


Emily fez sim com a cabeça e resolveu que queria ficar o máximo de tempo perto da echarpe. Enquanto tomava um chocolate quente que o homem de cabelos loiros trouxe, ela via pessoas andarem pelo lugar vazio e a caixa silenciosa. A mulher, que por um tempo desapareceu, voltou, com um vestido e a echarpe em volta do pescoço. Emily não entendeu o que tudo aquilo significava. Quando as luzes coloridas apareceram na caixa silenciosa, a mulher deu uma piscada em sua direção antes de entrar no palco.

A menina perdeu o ar por tamanha beleza e sorriu. Estava feliz, por algum motivo estava feliz e uma sensação de conforto a invadiu, mesmo sem nunca ter conhecido um lar.


-É lindo. – Disse para si mesma.


Se lembrou do senhor de cabelos grisalhos. Lá estava seu pedacinho do céu em meio a luzes coloridas. Essa era uma história que queria contar para ele. E pela primeira vez, ela se sentiu em casa.




12 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comentários


bottom of page